Teoria da imprevisão na Administração Pública: fundamentos, aplicações e jurisprudência

A Teoria da Imprevisão é um dos pilares do Direito Administrativo Contratual contemporâneo. Sua aplicação permite a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos sempre que eventos extraordinários e imprevisíveis alteram, substancialmente, as condições originalmente pactuadas, tornando a execução mais onerosa para o contratado.

Neste artigo, vamos explorar a origem, os fundamentos jurídicos, os requisitos e as aplicações práticas da Teoria da Imprevisão, no âmbito da Administração Pública, além de analisar jurisprudências relevantes sobre o tema.

Fundamentos e origem da teoria da imprevisão

A Teoria da Imprevisão possui raízes no Direito Civil francês, especialmente a partir da cláusula “rebus sic stantibus”, que flexibiliza a rigidez do “pacta sunt servanda” (o contrato deve ser cumprido).

Segundo esse entendimento, contratos de execução continuada ou diferida podem ser revistos quando fatos novos, imprevisíveis e inevitáveis tornam excessivamente onerosa a obrigação de uma das partes.

No Brasil, essa teoria foi incorporada ao Direito Administrativo para resguardar a equação econômico-financeira dos contratos administrativos, conforme previsto nos artigos 124, inciso II, alínea “d”, da Lei nº 14.133/2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Senão vejamos:

Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

[…]

II- Por acordo entre as partes:

[…]

d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.

Requisitos para aplicação

Conforme observado da norma supramencionada, a aplicação da teoria, na esfera pública, exige a presença dos seguintes requisitos:

  • Fato superveniente e imprevisível: o evento deve ocorrer após a celebração do contrato e não poderia ser antecipado pelas partes.
  • Inevitabilidade e estranheza ao controle das partes: não pode decorrer de culpa ou risco assumido por nenhuma das partes.
  • Onerosidade excessiva: deve haver desequilíbrio significativo que prejudique a execução do contrato, tornando-a inviável ou extremamente onerosa para o contratado.
  • Nexo causal: é necessário demonstrar o vínculo entre o fato imprevisível e o desequilíbrio econômico.

Relação entre a teoria da imprevisão e os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro

A Teoria da Imprevisão é o principal fundamento jurídico para a formulação de pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro – veja artigo próprio sobre o tema aqui – em contratos administrativos.

Quando eventos extraordinários e imprevisíveis comprometem as condições originalmente pactuadas, cabe ao contratado pleitear a recomposição da equação econômico-financeira, com base justamente na quebra de previsibilidade reconhecida por essa teoria.

Conforme mencionado anteriormente, o reequilíbrio econômico-financeiro tem respaldo legal no artigo 124, inciso II, alínea “d”, da Lei nº 14.133/2021, que assegura sua manutenção durante toda a vigência contratual, prevendo a revisão contratual quando houver desequilíbrio por causas alheias à vontade das partes.

Nesse sentido, a Teoria da Imprevisão funciona como base interpretativa para justificar a excepcionalidade do evento que gerou o desequilíbrio.

Assim, ela não é o pedido em si, mas o fundamento jurídico que permite a Administração acolher ou reconhecer que o aumento de custos, a escassez de insumos ou outros impactos relevantes não poderiam ser previstos ou suportados pelo contratado no momento da licitação ou da assinatura contratual.

Exemplo prático

Imagine uma empresa contratada para fornecer alimentos a unidades prisionais. Se, por exemplo, o preço do arroz quadruplicar em razão de um conflito internacional que afeta exportações e insumos agrícolas, essa empresa poderá apresentar pedido formal de reequilíbrio com base na Teoria da Imprevisão.

Será necessário comprovar:

  • A superveniência e imprevisibilidade do evento (o conflito);
  • A onerosidade excessiva (aumento abrupto do custo);
  • O nexo causal entre o evento e o desequilíbrio;
  • Que a situação não decorre de má gestão, culpa ou risco assumido.

Procedimentos

Na prática, o pedido de reequilíbrio econômico-financeiro deve ser instruído com provas documentais (notas fiscais, comparativos de mercado, relatórios técnicos) e fundamentado juridicamente na Teoria da Imprevisão, além de apontar a cláusula do contrato afetada.

A Administração, por sua vez, deve abrir processo administrativo específico para análise do pleito, garantindo ampla defesa e contraditório.

Exemplos práticos na Administração Pública

A pandemia da Covid-19 é um dos exemplos mais ilustrativos da aplicação da Teoria da Imprevisão no cenário recente.

Diversos contratos administrativos sofreram impactos decorrentes de paralisações, aumento de insumos e mudanças abruptas na demanda por serviços públicos, o que levou à revisão de cláusulas contratuais com base em pareceres jurídicos e normativos emitidos por Tribunais de Contas e Advocacias Públicas.

Além da pandemia, outros exemplos incluem:

  • Crises cambiais ou geopolíticas que impactem preços de insumos.
  • Desastres naturais (alagamentos, terremotos, secas).
  • Greves gerais que paralisem cadeias logísticas.

Jurisprudência relevante

TCU – Acórdão nº 2622/2013 – Plenário

No Acórdão nº 2622/2013, o Tribunal de Contas da União reconheceu que a Administração deve avaliar pedidos de reequilíbrio financeiro diante de eventos imprevisíveis que impactem a execução contratual, como variações abruptas de preços de materiais, desde que comprovados os requisitos legais. Vejamos:

“É dever da Administração zelar pela manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, sobretudo diante de fatos imprevisíveis que impliquem desequilíbrio significativo. […]”

Diferença entre Teoria da Imprevisão e Fato do Príncipe

É importante distinguir a Teoria da Imprevisão do chamado Fato do Príncipe, que também pode ensejar revisão contratual, mas se refere a atos unilaterais do próprio Poder Público (como edição de leis ou decretos) que oneram o contrato, sem relação direta com a vontade das partes.

Na Teoria da Imprevisão, o evento é externo à vontade de ambas as partes (ex: pandemia, guerra, crise econômica); no Fato do Príncipe, trata-se de ação do Estado como ente legislador ou regulador.

Conclusão

A Teoria da Imprevisão cumpre um papel essencial na preservação da continuidade e efetividade dos contratos administrativos, protegendo tanto o interesse público quanto a justa remuneração dos contratados.

Sua correta aplicação exige análise criteriosa dos fatos, documentação robusta e respeito aos princípios da legalidade, isonomia e eficiência administrativa.

Em tempos de instabilidade econômica e eventos globais imprevisíveis, a aplicação equilibrada da teoria se mostra um instrumento valioso de adaptação do Estado às circunstâncias excepcionais, garantindo a realização do interesse público sem penalizar indevidamente os particulares que contratam com a Administração.

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