A discussão sobre a possibilidade de redução salarial dos servidores ocupantes de cargos comissionados tem sido cada vez mais frequente em momentos de restrição orçamentária dos entes públicos.
Afinal, como compatibilizar o dever de contenção de despesas com a proteção aos direitos constitucionais dos trabalhadores do setor público?
O tema exige atenção, pois envolve princípios constitucionais de grande relevância, como a irredutibilidade de vencimentos, a legalidade e a moralidade administrativa.
O que são cargos comissionados?
Os cargos comissionados são posições de livre nomeação e exoneração, criadas por lei, destinadas ao exercício de atribuições de direção, chefia ou assessoramento. Em outras palavras, trata-se de funções de confiança, cujos titulares podem ser substituídos a qualquer tempo, conforme a conveniência da Administração.
Por serem de livre provimento, muitos gestores imaginam que também seria possível reduzir a remuneração desses cargos por simples decisão administrativa ou lei ordinária, sobretudo em períodos de crise fiscal. No entanto, essa percepção não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
O princípio da irredutibilidade salarial
A Constituição Federal de 1988 estabelece, de forma expressa, em seu artigo 37, inciso XV:
Art. 37. […]
XV – o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Essa regra vale para todos os servidores públicos, independentemente da forma de ingresso no cargo – sejam eles efetivos, temporários ou comissionados. Enquanto houver vínculo ativo e exercício das funções, o valor nominal da remuneração não pode ser diminuído por ato unilateral do ente público.
A lógica é simples: a livre nomeação e exoneração se referem apenas à possibilidade de encerrar o vínculo, mas não autorizam a redução do salário de quem permanece no cargo.
O julgamento da ADI 5441 e o entendimento do STF
A interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF), acerca da irredutibilidade salarial, tem sido firme ao longo dos anos. O tribunal já decidiu que não é possível reduzir vencimentos de servidores, mesmo diante de crises fiscais.
Essa posição foi consolidada no julgamento da ADI 2238, que analisou a constitucionalidade do dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que permitia reduzir jornada e salários de servidores.
Embora houvesse argumentos defendendo que a redução seria uma solução intermediária para evitar demissões, a maioria da Corte entendeu que tal medida afronta diretamente o núcleo essencial do direito fundamental à irredutibilidade.
No voto vencedor, ficou registrado que:
“A possibilidade de redução de jornada de trabalho e de vencimentos, mesmo por prazo determinado e em razão de crise fiscal, fere o princípio constitucional da irredutibilidade.”
Outro importante precedente é a ADI 5441, em que o STF declarou inconstitucionais dispositivos que autorizavam a redução remuneratória de servidores públicos durante a pandemia da COVID-19. A Corte reafirmou que justificativas orçamentárias e fiscais não são suficientes para relativizar garantias constitucionais de índole fundamental.
Além disso, no RE 1.305.209, foi decidido que a irredutibilidade também alcança cargos em comissão, contrariando o entendimento de que a precariedade do vínculo seria fundamento legítimo para redução temporária de vencimentos.
Além disso, o Supremo ressaltou que dificuldades financeiras não autorizam a flexibilização de direitos fundamentais e que eventuais medidas de ajuste devem observar estritamente as balizas constitucionais e legais.
Quais são as exceções previstas na Constituição?
O próprio texto constitucional admite hipóteses restritas em que pode haver redução de vencimentos. São elas:
- Teto remuneratório, que limita a remuneração ao subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal;
- Acúmulo indevido de cargos, que obriga a escolha de apenas um cargo quando verificada incompatibilidade;
- Fixação inicial do subsídio, no caso de carreiras que recebem por subsídio em parcela única;
- Progressividade tributária, que incide sobre a renda.
Nenhuma dessas exceções abrange a hipótese de redução salarial como solução genérica para contenção de despesas públicas.
Quais alternativas existem para o ajuste fiscal?
Diante da impossibilidade de reduzir vencimentos, a própria Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece outros mecanismos que podem ser acionados quando o ente público ultrapassa os limites de despesa com pessoal, como:
- Exoneração de servidores não estáveis;
- Suspensão temporária de admissões e concursos públicos;
- Revisão de contratos e políticas de pessoal dentro dos limites legais;
- Redução de cargos comissionados, por extinção ou exoneração, e não por corte de salário.
Vale lembrar que, no caso dos cargos em comissão, a exoneração pode ocorrer a qualquer tempo, por ato discricionário da autoridade competente, desde que não haja desvio de finalidade (por exemplo, perseguição política ou retaliação).
Contudo, enquanto o servidor permanecer no cargo, sua remuneração deve ser mantida integralmente, conforme fixado em lei municipal vigente.
Por que é importante observar esses limites?
O respeito à irredutibilidade salarial não é apenas uma formalidade constitucional. Trata-se de uma garantia fundamental que visa preservar a dignidade dos servidores públicos e assegurar previsibilidade financeira em sua vida profissional e familiar.
Além disso, a adoção de medidas que violem essa garantia pode gerar nulidade do ato, responsabilização pessoal dos agentes que ordenarem a redução e o dever de indenizar retroativamente os valores descontados.
Conclusão
A redução salarial de servidores comissionados, mesmo em períodos de crise fiscal, não encontra respaldo constitucional e configura afronta direta ao art. 37, inciso XV, da Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5441, consolidou esse entendimento, reafirmando que a contenção de despesas deve observar os instrumentos previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal e jamais implicar a supressão de direitos fundamentais.
Assim, qualquer proposta legislativa ou administrativa de diminuição remuneratória de cargos em comissão deve ser cuidadosamente reavaliada sob pena de inconstitucionalidade, nulidade e responsabilização dos gestores.