
A doação de bens públicos é uma prática relativamente comum no cotidiano da Administração Pública, especialmente em situações que envolvem interesse social ou apoio institucional a outros entes e órgãos.
No entanto, embora o objetivo muitas vezes seja nobre, o procedimento está sujeito a diversas exigências legais que precisam ser rigorosamente observadas, para garantir sua validade e evitar riscos de responsabilização aos agentes envolvidos.
Neste artigo, explicamos o que a legislação brasileira estabelece sobre o tema, quais os requisitos para a doação e os cuidados que a Administração Pública deve adotar ao conduzir essa espécie de ato.
O que é a doação de bens públicos?
A doação é uma forma de alienação gratuita de bens públicos, na qual a Administração transfere a titularidade de um bem móvel ou imóvel para outra pessoa jurídica ou física, sem exigir contrapartida financeira.
Esse ato deve sempre atender ao interesse público, ser motivado por razões de conveniência administrativa e respeitar os princípios constitucionais da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.
Qual lei rege esse procedimento?
Com a revogação da antiga Lei nº 8.666/1993, a disciplina atual da matéria está na Lei nº 14.133/2021, que instituiu o novo regime jurídico das licitações e contratos administrativos.
O artigo 76, da nova norma, prevê que, na alienação de bens pela Administração Pública, inclusive por doação, devem ser observados os requisitos legais e os princípios administrativos aplicáveis. Vejamos os requisitos legalmente elencados:
Art. 76.A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:
I – tratando-se de bens imóveis, inclusive os pertencentes às autarquias e às fundações, exigirá autorização legislativa e dependerá de licitação na modalidade leilão, dispensada a realização de licitação nos casos de:
b) doação, permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo, ressalvado o disposto nas alíneas “f”, “g” e “h” deste inciso;
c) permuta por outros imóveis que atendam aos requisitos relacionados às finalidades precípuas da Administração, desde que a diferença apurada não ultrapasse a metade do valor do imóvel que será ofertado pela União, segundo avaliação prévia, e ocorra a torna de valores, sempre que for o caso;
e) venda a outro órgão ou entidade da Administração Pública de qualquer esfera de governo;
f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação e permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente usados em programas de habitação ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgão ou entidade da Administração Pública;
g) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação e permissão de uso de bens imóveis comerciais de âmbito local, com área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) e destinados a programas de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgão ou entidade da Administração Pública;
h) alienação e concessão de direito real de uso, gratuita ou onerosa, de terras públicas rurais da União e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) onde incidam ocupações até o limite de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, para fins de regularização fundiária, atendidos os requisitos legais;
i) legitimação de posse de que trata o art. 29 da Lei nº 6.383, de 7 de dezembro de 1976, mediante iniciativa e deliberação dos órgãos da Administração Pública competentes;
j) legitimação fundiária e legitimação de posse de que trata a Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017;
II – tratando-se de bens móveis, dependerá de licitação na modalidade leilão, dispensada a realização de licitação nos casos de:
a) doação, permitida exclusivamente para fins e uso de interesse social, após avaliação de oportunidade e conveniência socioeconômica em relação à escolha de outra forma de alienação;
b) permuta, permitida exclusivamente entre órgãos ou entidades da Administração Pública;
c) venda de ações, que poderão ser negociadas em bolsa, observada a legislação específica;
d) venda de títulos, observada a legislação pertinente;
e) venda de bens produzidos ou comercializados por entidades da Administração Pública, em virtude de suas finalidades;
f) venda de materiais e equipamentos sem utilização previsível por quem deles dispõe para outros órgãos ou entidades da Administração Pública.
§ 1º A alienação de bens imóveis da Administração Pública cuja aquisição tenha sido derivada de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento dispensará autorização legislativa e exigirá apenas avaliação prévia e licitação na modalidade leilão.
§ 2º Os imóveis doados com base na alínea “b” do inciso I do caput deste artigo, cessadas as razões que justificaram sua doação, serão revertidos ao patrimônio da pessoa jurídica doadora, vedada sua alienação pelo beneficiário.
§ 3º A Administração poderá conceder título de propriedade ou de direito real de uso de imóvel, admitida a dispensa de licitação, quando o uso destinar-se a:
I – outro órgão ou entidade da Administração Pública, qualquer que seja a localização do imóvel;
II – pessoa natural que, nos termos de lei, regulamento ou ato normativo do órgão competente, haja implementado os requisitos mínimos de cultura, de ocupação mansa e pacífica e de exploração direta sobre área rural, observado o limite de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009.
§ 4º A aplicação do disposto no inciso II do § 3º deste artigo será dispensada de autorização legislativa e submeter-se-á aos seguintes condicionamentos:
I – aplicação exclusiva às áreas em que a detenção por particular seja comprovadamente anterior a 1º de dezembro de 2004;
II – submissão aos demais requisitos e impedimentos do regime legal e administrativo de destinação e de regularização fundiária de terras públicas;
III – vedação de concessão para exploração não contemplada na lei agrária, nas leis de destinação de terras públicas ou nas normas legais ou administrativas de zoneamento ecológico-econômico;
IV – previsão de extinção automática da concessão, dispensada notificação, em caso de declaração de utilidade pública, de necessidade pública ou de interesse social;
V – aplicação exclusiva a imóvel situado em zona rural e não sujeito a vedação, impedimento ou inconveniente à exploração mediante atividade agropecuária;
VI – limitação a áreas de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, vedada a dispensa de licitação para áreas superiores;
VII – acúmulo com o quantitativo de área decorrente do caso previsto na alínea “i” do inciso I do caput deste artigo até o limite previsto no inciso VI deste parágrafo.
§ 5º Entende-se por investidura, para os fins desta Lei, a:
I – alienação, ao proprietário de imóvel lindeiro, de área remanescente ou resultante de obra pública que se tornar inaproveitável isoladamente, por preço que não seja inferior ao da avaliação nem superior a 50% (cinquenta por cento) do valor máximo permitido para dispensa de licitação de bens e serviços previsto nesta Lei;
II – alienação, ao legítimo possuidor direto ou, na falta dele, ao poder público, de imóvel para fins residenciais construído em núcleo urbano anexo a usina hidrelétrica, desde que considerado dispensável na fase de operação da usina e que não integre a categoria de bens reversíveis ao final da concessão.
§ 6º A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente, os encargos, o prazo de seu cumprimento e a cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, dispensada a licitação em caso de interesse público devidamente justificado.
§ 7º Na hipótese do § 6º deste artigo, caso o donatário necessite oferecer o imóvel em garantia de financiamento, a cláusula de reversão e as demais obrigações serão garantidas por hipoteca em segundo grau em favor do doador.
Além da legislação federal, cada ente federativo pode estabelecer normas complementares por meio de sua Lei Orgânica, legislação municipal ou estadual, e regulamentos internos que detalham os procedimentos para a doação de bens, especialmente móveis.
Quais os requisitos para a doação?
A doação de bens públicos, em regra, exige:
- Justificativa de interesse público: A doação só pode ser realizada quando houver interesse público devidamente comprovado e fundamentado. Ou seja, a Administração deve demonstrar que a transferência do bem atende a uma necessidade coletiva e contribui para a promoção de políticas públicas ou serviços relevantes à sociedade.
- Autorização legislativa (quando aplicável): Em muitos casos, sobretudo quando se trata de doação de bens imóveis ou de bens com alto valor agregado, a doação depende de autorização do Poder Legislativo local, conforme previsto na Lei Orgânica do respectivo ente federativo.
- Avaliação prévia do bem: É recomendável (e muitas vezes exigido por normativos locais) que a Administração avalie previamente o valor do bem a ser doado, para garantir a transparência do ato e evitar prejuízo ao erário.
- Formalização por meio de termo de doação: A transferência deve ser documentada por instrumento jurídico formal, que especifique o bem doado, sua destinação, as obrigações do donatário e, se for o caso, cláusula de reversão em caso de desvio de finalidade.
- Publicação do ato: O ato de doação, uma vez formalizado, deve ser publicado na imprensa oficial ou meio equivalente, garantindo a publicidade e o controle social.
Quem pode receber bens doados?
A Administração Pública pode doar bens a outras entidades públicas, como órgãos de segurança, saúde ou educação, a organizações da sociedade civil (desde que legalmente constituídas e aptas), e, em casos específicos e devidamente fundamentados, até a pessoas físicas em situação de vulnerabilidade social.
É essencial que o donatário esteja em condições legais de receber o bem e cumprir a finalidade definida no termo de doação. Caso contrário, poderá haver exigência de devolução ou responsabilização.
Cuidados e recomendações para evitar ilegalidades
Doações realizadas sem justificativa adequada, sem observância dos requisitos legais ou sem os documentos formais exigidos podem ser questionadas pelos órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, o Ministério Público ou mesmo pelo Poder Judiciário.
Por isso, recomenda-se que as administrações:
- Consultem sua assessoria jurídica previamente;
- Avaliem os riscos orçamentários e legais da operação;
- Registrem formalmente todas as etapas do processo;
- Evitem doações que possam ser interpretadas como favorecimento pessoal, político ou partidário.
Conclusão
A doação de bens pela Administração Pública é uma ferramenta importante para promover a cooperação entre instituições e atender necessidades coletivas.
No entanto, ela deve ser tratada com a mesma seriedade e rigor que qualquer outro ato administrativo, obedecendo à legislação vigente e aos princípios que regem a gestão pública.
O respeito às normas legais e aos procedimentos adequados não apenas assegura a legalidade do ato, como também protege os gestores contra eventuais questionamentos e fortalece a transparência no uso do patrimônio público.