O processo de digitalização de documentos é uma realidade cada vez mais presente na Administração Pública, seja por razões de espaço físico, economia de recursos ou modernização dos fluxos administrativos.
No entanto, essa prática exige cuidados jurídicos e técnicos, especialmente quando se trata de documentos arquivados por determinado órgão do Poder Público, mas que pertencem a outro.
Em muitos Municípios, as Câmaras Municipais armazenam, historicamente, uma grande quantidade de documentos do Executivo, por exemplo, como cópias de projetos de lei, balancetes, ofícios e correspondências.
A dúvida recorrente que surge nesse contexto é: a Câmara pode digitalizar e descartar os arquivos físicos que não são de sua autoria?
A titularidade dos documentos importa
O primeiro ponto a ser esclarecido diz respeito à titularidade documental. Mesmo que os arquivos estejam fisicamente sob a guarda de determinado órgão, a origem dos documentos define a quem eles pertencem legalmente.
Se os documentos foram produzidos pelo Executivo, como Prefeituras ou Secretarias Municipais, eles permanecem sob a responsabilidade desse ente, inclusive para fins de guarda, conservação e eventual descarte.
Nesse cenário, o órgão que, por alguma razão os arquivou, não pode, por iniciativa própria, digitalizar e eliminar fisicamente documentos que não sejam de sua titularidade, sem antes obter autorização formal do órgão responsável.
O que diz a legislação sobre digitalização e descarte
A Lei nº 12.682/2012, que dispõe sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, estabelece que, documentos públicos podem ser digitalizados e considerados autênticos, desde que atendam aos requisitos legais de integridade, confiabilidade e preservação.
A digitalização deve garantir a fidedignidade com o documento original, e a substituição do suporte físico pelo digital só é válida quando observadas normas técnicas e legais.
Além disso, a Resolução nº 40/2014 do CONARQ (Conselho Nacional de Arquivos) disciplina os procedimentos para a digitalização e para a eliminação de documentos arquivísticos, reforçando a necessidade de observância às tabelas de temporalidade, que classificam os documentos quanto ao seu valor (administrativo, fiscal, jurídico e histórico) e estabelecem prazos mínimos de guarda.
Portanto, o simples fato de digitalizar um documento não autoriza automaticamente seu descarte.
Documentos de guarda permanente, por exemplo, devem ser preservados indefinidamente, mesmo após digitalização.
O papel da tabela de temporalidade
A tabela de temporalidade é um instrumento essencial para a gestão documental. Nela, cada tipo de documento é classificado com base em sua função e relevância.
Para os documentos do Legislativo, a Câmara deve dispor de sua própria tabela, geralmente elaborada com apoio técnico do Arquivo Público Estadual ou Municipal. Já os documentos do Executivo seguem tabela distinta, de responsabilidade da Prefeitura.
Assim, para a eliminação de qualquer documento, a tabela de temporalidade deve indicar a possibilidade de descarte e o cumprimento do prazo mínimo de guarda.
Além disso, a eliminação deve ser precedida de publicação de edital e lavratura de termo de eliminação, conforme prevê a legislação arquivística.
Recomendações práticas
Diante desse cenário, seguem algumas orientações para que o processo de digitalização e eventual descarte de documentos seja conduzido com segurança jurídica e técnica:
- Identificação dos documentos: separação clara entre os documentos do Legislativo e do Executivo.
- Consulta às tabelas de temporalidade: análise para verificar quais documentos podem ser eliminados e quais devem ser preservados.
- Digitalização conforme normas técnicas: utilização de sistemas seguros, formatos recomendados (como PDF/A) e metadados adequados para garantir autenticidade e integridade.
- Comunicação formal com o órgão titular: nos casos de documentos de sua titularidade, deve-se solicitar devolução ou autorização expressa para digitalização e descarte.
- Publicação de edital e termo de eliminação: quando for possível eliminar documentos, é necessário registrar oficialmente esse procedimento, garantindo a transparência e rastreabilidade dos atos administrativos.
E se os documentos forem devolvidos?
Uma alternativa recomendável é a devolução dos documentos físicos ao órgão titular, acompanhada de inventário e termo de entrega. Essa medida transfere a responsabilidade legal pela guarda e conservação à origem correta do documento, liberando espaço físico, sem violar a legislação vigente.
Caso o órgão titular não manifeste interesse na devolução, aquele que detém a posse dos documentos poderá propor, mediante autorização formal, a digitalização e guarda digital desses documentos, com base em convênio ou termo de cooperação entre os poderes, o que garante maior segurança jurídica ao procedimento.
Considerações finais
A digitalização dos arquivos públicos é uma importante ferramenta de modernização da gestão, mas deve ser feita com critérios rigorosos. No caso de órgãos detentores da posse de documentos cuja titularidade seja de outro órgão, referida titularidade documental é um fator central para definir responsabilidades e permissões.
Assim, a digitalização e eventual descarte de documentos físicos exigem análise técnica, respaldo legal e respeito à legislação arquivística.
O zelo pelo patrimônio documental da Administração Pública – seja ela municipal, estadual, distrital ou federal – é um dever que ultrapassa a praticidade administrativa — é, acima de tudo, uma questão de responsabilidade institucional e de preservação da memória pública.