O decoro parlamentar é um princípio fundamental do sistema jurídico brasileiro, essencial para assegurar a dignidade das Casas Legislativas e garantir que os representantes do povo hajam de acordo com os padrões éticos exigidos pelo cargo.
Apesar de a Constituição de 1988 não fornecer uma definição precisa para o conceito de “quebra de decoro parlamentar”, o texto constitucional e os regimentos internos das Casas Legislativas detalham situações que podem levar à perda do mandato.
O entendimento e a aplicação do decoro parlamentar têm se desenvolvido ao longo do tempo, com contribuições importantes da jurisprudência e da doutrina, que ajudaram a moldar os parâmetros éticos e legais para o comportamento dos parlamentares no exercício do seu mandato.
Conceito e fundamentos do decoro parlamentar
O conceito de decoro parlamentar é uma combinação de normas legais e morais que regem a conduta dos membros do Congresso Nacional – aplicando-se o princípio da simetria, leia-se Assembleia Legislativa e Câmara Municipal.
Essas normas têm como objetivo garantir que os parlamentares hajam de maneira compatível com a dignidade do cargo, respeitando as prerrogativas do mandato e as expectativas da sociedade.
O decoro, portanto, não é algo que se refere apenas ao comportamento pessoal do parlamentar, mas à sua atuação enquanto representante eleito pela população.
De acordo com o Professor José Cretella Júnior1, “o procedimento do Deputado e do Senador tem de ser compatível com o decoro, a decência, a dignidade, o brio parlamentar. Conduta decorosa é o procedimento conforme os padrões de elevado grau de moralidade”.
Em outras palavras, o decoro parlamentar não se limita a ações ilícitas, mas também abrange atitudes que atentem contra a honra e a moralidade esperada dos representantes públicos.
No entanto, não possui uma definição objetiva na Constituição. O artigo 55, da Constituição de 1988, estabelece que a perda do mandato de um parlamentar pode ocorrer quando sua conduta for incompatível com o decoro parlamentar. Vejamos:
Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.
[…]
A interpretação desse conceito, portanto, depende dos valores e das normas que norteiam a sociedade e o sistema político em determinado momento histórico.
Imprecisão e flexibilidade do conceito de decoro
A imprecisão do conceito de decoro parlamentar é uma característica que permite sua adaptação ao contexto político e social do momento.
O que se entende por decoro pode variar ao longo do tempo e depender de uma análise contextualizada das atitudes dos parlamentares.
Como explica a professora Carla Costa Teixeira2, o decoro parlamentar é uma “categoria social que se ampara na sinergia entre as esferas pública e privada e se vale de práticas políticas distantes da Democracia, como o individualismo e o clientelismo”.
Em termos práticos, isso significa que a definição de quebra de decoro é flexível e pode evoluir conforme as mudanças na sociedade e nas demandas políticas.
Para um parlamentar, o que é considerado um comportamento inapropriado ou uma falha de decoro hoje pode não ser considerado da mesma forma em outra época, especialmente em contextos sociais e políticos distintos.
Decoro parlamentar e a imunidade dos parlamentares
A imunidade parlamentar é outro conceito fundamental que deve ser analisado em conjunto com o decoro.
A Constituição de 1988 garante aos parlamentares inviolabilidade por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato, conforme dispõe o seu artigo 53. Vejamos:
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 1º Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 6º Os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 7º A incorporação às Forças Armadas de Deputados e Senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
§ 8º As imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
Isso significa que, no contexto de suas funções, os parlamentares têm ampla liberdade para se expressar, sem risco de sofrer penalidades civis ou penais.
No entanto, a imunidade parlamentar não é absoluta. Como alertam especialistas, abuso da imunidade pode configurar uma violação ao decoro, especialmente quando o parlamentar usa seu cargo para fraudar o processo legislativo, praticar atos de corrupção ou atacar a imagem e o prestígio da Casa Legislativa.
A jurisprudência tem evoluído para destacar que a imunidade não pode ser usada como escudo para comportamentos indecorosos, como a corrupção ou a promoção de interesses pessoais em detrimento do interesse público.
No Caso do “Mensalão”, por exemplo, o uso da imunidade parlamentar para proteger práticas ilícitas foi um dos pontos cruciais no processo que resultou na cassação de mandatos e na condenação de políticos envolvidos. A denúncia de corrupção feita por parlamentares, que havia sido inicialmente considerada uma quebra do decoro, acabou sendo defendida como um exercício legítimo da função de fiscalização, apesar da repercussão negativa que causou à imagem do Legislativo.
Jurisprudência e casos notórios
A jurisprudência brasileira tem sido um instrumento crucial para a evolução do conceito de decoro parlamentar.
Nos tribunais superiores, especialmente no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a definição e as implicações da quebra de decoro têm sido debatidas e aprimoradas ao longo dos anos.
Um dos casos mais emblemáticos de quebra de decoro parlamentar foi o do ex-deputado Eduardo Cunha, que, em 2016, teve seu mandato cassado por práticas de corrupção e envolvimento no esquema de corrupção da Petrobras.
O STF entendeu que os atos de corrupção praticados por Cunha, durante seu exercício parlamentar, configuraram não apenas a violação da legislação, mas também uma quebra de decoro, dado o impacto de suas ações na confiança da população nas instituições do Legislativo.
Outro caso relevante foi o “Caso Arthur do Val”, em que o deputado estadual teve seu mandato cassado por atitudes consideradas incompatíveis com o decoro parlamentar após vazamento de áudios com comentários sexistas e desrespeitosos. A decisão foi fundamentada na violação da dignidade do cargo e na maculação da imagem da Casa Legislativa.
Processo de apuração e sanções
A apuração da quebra de decoro parlamentar segue um processo disciplinar estabelecido pelos Regimentos Internos das Casas Legislativas. Em caso de denúncia de quebra de decoro, o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar é responsável por instaurar o processo, ouvir a defesa do parlamentar e encaminhar a decisão para a votação em plenário. Se a denúncia for aceita, o plenário pode votar pela cassação do mandato.
O processo de cassação é tipicamente de natureza política, o que significa que a decisão final é tomada pelos próprios pares do parlamentar acusado, e não pelo Judiciário.
Isso levanta questionamentos sobre a imparcialidade do processo, dado que o parlamentar acusado pode contar com o apoio de aliados políticos, enquanto seus adversários podem pressionar pela cassação.
O papel da Justiça Eleitoral
Além do processo legislativo, a Justiça Eleitoral também pode ser envolvida na análise de condutas que atentem contra o decoro, especialmente em casos de fraude eleitoral, compra de votos ou abuso do poder político.
A perda do mandato por quebra de decoro pode ser contestada no Tribunal Superior Eleitoral, especialmente se a conduta ilícita comprometer a regularidade das eleições.
Considerações finais e desafios
O decoro parlamentar continua sendo um tema de grande relevância para a democracia brasileira. A constante evolução do conceito, a complexidade das situações de quebra de decoro e a necessidade de adaptação das normas e práticas ao contexto atual exigem um equilíbrio cuidadoso entre os direitos dos parlamentares e a confiança pública nas instituições.
A jurisprudência brasileira tem mostrado que a aplicação do decoro não deve ser uma ferramenta de repressão, mas um mecanismo para garantir a dignidade e a ética no exercício do mandato parlamentar.
Ao mesmo tempo, é essencial que o processo de apuração seja conduzido com rigor e transparência, a fim de evitar que o conceito de decoro se torne um instrumento de fiscalização partidária e não um mecanismo de justiça.