A criação de despesas não autorizadas e seus impactos na gestão pública municipal

A responsabilidade na condução das finanças públicas é um dos pilares centrais do Estado Democrático de Direito.

No âmbito municipal, essa responsabilidade se materializa por meio de regras rígidas sobre a criação, execução e controle das despesas públicas, especialmente diante das limitações orçamentárias e da vigilância cada vez mais intensa dos órgãos de controle externo e do Ministério Público.

Um dos principais problemas que afetam a saúde fiscal dos municípios brasileiros é a criação de despesas sem autorização legal ou sem respaldo na legislação orçamentária.

Trata-se de uma prática recorrente, muitas vezes impulsionada por demandas políticas imediatistas ou por má compreensão dos limites legais, que acaba por comprometer a estabilidade das contas públicas e a legalidade dos atos administrativos.

O Princípio da Legalidade e a criação de despesas públicas

A Constituição Federal estabelece, no caput do artigo 37, o princípio da legalidade como um dos fundamentos da administração pública.

No campo das finanças públicas, esse princípio se traduz na exigência de que toda despesa pública esteja previamente autorizada por lei e prevista na Lei Orçamentária Anual (LOA).

A Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) reforça essa exigência, ao estabelecer regras específicas para a geração de novas despesas, notadamente nos artigos 15 a 17. Vejamos:

Seção I

Da Geração da Despesa

Art. 15. Serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos arts. 16 e 17.

Art. 16.A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:        (Vide ADI 6357)

I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;

II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 1o Para os fins desta Lei Complementar, considera-se:

I – adequada com a lei orçamentária anual, a despesa objeto de dotação específica e suficiente, ou que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício;

II – compatível com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, a despesa que se conforme com as diretrizes, objetivos, prioridades e metas previstos nesses instrumentos e não infrinja qualquer de suas disposições.

§ 2o A estimativa de que trata o inciso I do caput será acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.

§ 3o Ressalva-se do disposto neste artigo a despesa considerada irrelevante, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 4o As normas do caput constituem condição prévia para:

I – empenho e licitação de serviços, fornecimento de bens ou execução de obras;

II – desapropriação de imóveis urbanos a que se refere o § 3o do art. 182 da Constituição.

Subseção I

Da Despesa Obrigatória de Caráter Continuado

Art. 17.Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.        (Vide ADI 6357)

§ 1o Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.     (Vide Lei Complementar nº 176, de 2020)

§ 2o Para efeito do atendimento do § 1o, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no § 1o do art. 4o, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa.        (Vide Lei Complementar nº 176, de 2020)

§ 3o Para efeito do § 2o, considera-se aumento permanente de receita o proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.      (Vide Lei Complementar nº 176, de 2020)

§ 4o A comprovação referida no § 2o, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias.       (Vide Lei Complementar nº 176, de 2020)

§ 5o A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no § 2o, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar.      (Vide Lei Complementar nº 176, de 2020)

§ 6o O disposto no § 1o não se aplica às despesas destinadas ao serviço da dívida nem ao reajustamento de remuneração de pessoal de que trata o inciso X do art. 37 da Constituição.

§ 7o Considera-se aumento de despesa a prorrogação daquela criada por prazo determinado.

Criar uma despesa sem o devido respaldo legal significa, na prática, violar esse princípio constitucional, sujeitando a administração a sanções que podem ir desde a suspensão de transferências voluntárias até a responsabilização do gestor por irregularidades fiscais.

As formas mais recorrentes de criação irregular de despesas

No cotidiano da administração municipal, a criação não autorizada de despesas pode ocorrer de diversas formas. Uma das mais comuns é a concessão de reajustes salariais, abonos, gratificações ou verbas indenizatórias sem que haja previsão na LOA ou sem que tenham sido precedidas de estudo de impacto orçamentário-financeiro.

Esse vício compromete não apenas a execução orçamentária, mas a própria legalidade do ato concessivo.

Outra prática recorrente é a criação de cargos públicos sem a devida estimativa do impacto financeiro e sem indicação das fontes de custeio, conforme exige o artigo 16, da LRF.

A ausência dessa análise fere não apenas a lógica da gestão fiscal responsável, mas também compromete o equilíbrio entre receita e despesa, colocando em risco o cumprimento de metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

Além disso, é importante destacar a irregularidade na contratação de serviços ou celebração de convênios e parcerias que impliquem obrigações financeiras contínuas, sem que essas despesas estejam previamente autorizadas no orçamento do exercício.

A execução de políticas públicas sem previsão orçamentária adequada afronta, diretamente, o artigo 167, da Constituição, que veda expressamente a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.

O papel da LRF e o dever de planejamento

A Lei de Responsabilidade Fiscal instituiu um marco normativo relevante ao exigir planejamento, controle e transparência na gestão dos recursos públicos.

Seu objetivo não é impedir a expansão das despesas públicas, mas garantir que elas sejam feitas de forma sustentável, responsável e dentro das possibilidades reais do ente federativo.

Toda despesa nova deve estar vinculada a metas fiscais, ser acompanhada de estimativas de impacto e atender ao princípio da contrapartida: ou seja, sua criação deve vir acompanhada de medidas compensatórias de aumento de receita ou de redução de outras despesas, nos termos do artigo 17, da LRF.

A inobservância dessas exigências desorganiza a estrutura orçamentária e compromete a capacidade de investimento e de prestação de serviços essenciais à população.

Fiscalização e responsabilização

A criação de despesas não autorizadas vem sendo objeto de crescente atenção por parte dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, especialmente em razão dos efeitos que tais práticas provocam na gestão local: aumento de passivos, descumprimento de limites legais com pessoal, frustração de metas fiscais e, em muitos casos, colapso na execução orçamentária.

Esses atos, quando identificados, geram responsabilização pessoal do gestor público, inclusive por meio de ações por improbidade administrativa, com base na Lei nº 8.429/1992, além de aplicação de sanções pelos Tribunais de Contas, como multas, pareceres prévios pela rejeição de contas e outras penalidades.

Considerações finais

A criação de despesa pública, no contexto municipal, não é um ato meramente administrativo: é um ato jurídico de natureza complexa, que exige respaldo legal, previsão orçamentária, compatibilidade com os instrumentos de planejamento e observância estrita dos princípios da responsabilidade fiscal.

O enfrentamento desse desafio exige, sobretudo, o fortalecimento das estruturas de controle interno, a qualificação técnica dos gestores e a atuação proativa dos procuradores municipais na orientação dos atos administrativos.

Somente assim será possível consolidar uma cultura de legalidade e responsabilidade na administração pública local, assegurando o equilíbrio das contas públicas e a efetividade das políticas públicas.

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