A participação de cooperativas em licitações: limites, possibilidade e entendimentos nas esferas federativas

A presença de cooperativas, em processos licitatórios, sempre gerou debates entre juristas, gestores públicos e órgãos de controle. Contudo, com a vigência da Lei nº 14.133/2021, conhecida como a Nova Lei de Licitações, o ordenamento jurídico passou a tratar expressamente do tema, reconhecendo as especificidades dessas entidades sem ignorar os cuidados necessários para evitar fraudes trabalhistas ou desvirtuamentos do modelo cooperativo.

Neste artigo, analisamos o tema com profundidade, abordando o que diz a nova lei, como a doutrina e a jurisprudência tratam a questão, e trazendo exemplos concretos de estados e municípios brasileiros que já se relacionam com cooperativas em contratações públicas.

Previsão legal expressa na nova lei

O artigo 16, da Lei nº 14.133/2021, estabelece de forma clara:

Art. 16. Os profissionais organizados sob a forma de cooperativa poderão participar de licitação quando:

I – a constituição e o funcionamento da cooperativa observarem as regras estabelecidas na legislação aplicável, em especial a Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, a Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012, e a Lei Complementar nº 130, de 17 de abril de 2009;

II – a cooperativa apresentar demonstrativo de atuação em regime cooperado, com repartição de receitas e despesas entre os cooperados;

III – qualquer cooperado, com igual qualificação, for capaz de executar o objeto contratado, vedado à Administração indicar nominalmente pessoas;

IV – o objeto da licitação referir-se, em se tratando de cooperativas enquadradas na Lei nº 12.690, de 19 de julho de 2012, a serviços especializados constantes do objeto social da cooperativa, a serem executados de forma complementar à sua atuação.

Essa disposição representou um avanço em relação à legislação anterior (Lei nº 8.666/1993), que não mencionava expressamente as cooperativas. Agora, a nova legislação autoriza sua participação, desde que respeitados os princípios do cooperativismo e que não ocorra intermediação irregular de trabalho, algo que vinha sendo coibido pela jurisprudência dos tribunais de contas.

O que diz a Constituição e a Lei das Cooperativas

A Constituição Federal reconhece a relevância das cooperativas no desenvolvimento nacional (art. 174, §2º), o que reforça o entendimento de que o Estado deve fomentar o cooperativismo, inclusive por meio de contratações públicas.

Já a Lei nº 5.764/1971, que institui a Política Nacional do Cooperativismo, define que as cooperativas são sociedades de pessoas com forma jurídica própria, voltadas à prestação de serviços aos associados, sem fins lucrativos.

Portanto, a participação dessas entidades em licitações não pode ser confundida com empresas prestadoras de serviços com vínculo empregatício tradicional. A contratação deve respeitar a autonomia da cooperativa e a relação de autogestão entre seus membros.

Jurisprudência dos Tribunais de Contas

O Tribunal de Contas da União (TCU) admite a participação de cooperativas em licitações, desde que seja comprovado o caráter genuíno da organização, destacando que a sua contratação deve ser analisada com cautela, principalmente em serviços contínuos de mão de obra.

Outros acórdãos reforçam que a ausência de vínculo empregatício direto não pode ser usada para burlar obrigações trabalhistas. Ou seja, a cooperativa deve manter sua natureza institucional e não ser utilizada como empresa de fachada.

Como Estados e Municípios tratam o tema

São Paulo

O TCE-SP segue o entendimento do TCU, permitindo a participação de cooperativas, desde que o edital exija comprovações de funcionamento regular, capacidade técnica e comprovação da não intermediação de mão de obra. Em Municípios como Ribeirão Preto e Santos, cooperativas de serviços gerais foram contratadas com base nesses critérios.

Minas Gerais

Em Minas, o TCE-MG tem posição clara: cooperativas podem participar de licitações, mas o vínculo entre os cooperados e a entidade deve ser legítimo. Em Uberlândia, por exemplo, houve auditoria sobre a contratação de cooperativas para serviços urbanos, com recomendação de ajustes na fase de habilitação, para coibir irregularidades.

Bahia

O governo baiano tem incentivado a contratação de cooperativas, especialmente da agricultura familiar, com base na Lei nº 11.947/2009, que permite a compra direta de alimentos para merenda escolar. Em Feira de Santana, cooperativas agrícolas fornecem produtos diretamente à Prefeitura, com fiscalização da regularidade da organização.

Amazonas

No Amazonas, a Secretaria Estadual de Saúde realiza licitações específicas para cooperativas médicas, exigindo comprovação da relação associativa e da inexistência de vínculo empregatício disfarçado. Há fiscalização intensa do Ministério Público do Trabalho (MPT) nesses contratos, justamente para evitar fraudes.

Paraná

Por fim, no Paraná, diversas cidades contratam cooperativas de catadores de materiais recicláveis por meio de licitação ou dispensa prevista na Lei nº 11.445/2007. Em Curitiba, a política de resíduos sólidos prevê expressamente a inclusão de cooperativas em sua cadeia de serviços públicos.

Cuidados necessários na contratação de cooperativas

Apesar da previsão legal, a contratação de cooperativas exige atenção redobrada da Administração Pública. Entre os cuidados recomendados estão:

  • Exigir comprovação do estatuto social, registro na OCB (Organização das Cooperativas do Brasil) e ata de assembleia que comprove a natureza cooperativa;
  • Verificar a capacidade técnica e operacional da entidade;
  • Avaliar se os cooperados participam das decisões e repartem os resultados, conforme os princípios da autogestão;
  • Prever cláusulas contratuais que evitem a subordinação, pessoalidade e habitualidade, características típicas de vínculo empregatício.

Conclusão

A participação de cooperativas em licitações públicas é não apenas legal, mas também desejável, desde que ocorra com segurança jurídica e respeito aos princípios cooperativistas.

Com a previsão do artigo 16, da Lei nº 14.133/2021, o legislador deu um passo importante no reconhecimento dessa possibilidade, alinhando o texto legal às boas práticas já adotadas por diversos entes federativos.

Cabe agora aos gestores públicos, assessores jurídicos e órgãos de controle promoverem uma atuação prudente, técnica e transparente, garantindo que o uso do modelo cooperativo sirva ao interesse público, à inclusão produtiva e ao desenvolvimento sustentável.

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