Introdução
O Regimento Interno representa a espinha dorsal do funcionamento das Câmaras Municipais brasileiras, estabelecendo as regras procedimentais que norteiam toda a atividade legislativa municipal. Trata-se de um instrumento normativo fundamental para o adequado exercício da democracia local, pois disciplina desde a organização interna da Casa até os complexos trâmites do processo legislativo. No entanto, apesar de sua inquestionável relevância, observa-se que grande parte dos regimentos internos das Câmaras Municipais brasileiras encontra-se em estado preocupante de desatualização, muitos deles permanecendo praticamente inalterados desde sua primeira versão, elaborada no início da década de 1990, logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Esta realidade gera consequências graves para o funcionamento das Casas Legislativas municipais, desde insegurança jurídica até a possibilidade de anulação judicial de atos legislativos, comprometendo a própria legitimidade da produção normativa local.
O presente artigo busca analisar a importância do Regimento Interno para as Câmaras Municipais, identificar as principais matérias que devem constar nesse instrumento normativo, destacar a necessidade de sua constante atualização e apontar os principais vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade encontrados em regimentos desatualizados.
O Regimento Interno e sua natureza jurídica
O Regimento Interno é, sem dúvida, a principal ferramenta de trabalho dos vereadores e servidores da Câmara que atuam na área legislativa, abrangendo plenário, comissões e assessoria parlamentar. Conforme destaca Renata Cunha, especialista em Processo Legislativo e Regimento Interno de Casas Legislativas, trata-se de uma espécie de “manual de instruções”, um guia de toda a organização, estrutura e funcionamento do Poder Legislativo, para que haja ordem e disciplina durante os procedimentos legislativos.
Do ponto de vista jurídico, os Regimentos Internos são Resoluções, previstas no Artigo 59, da Constituição Federal, o que significa que possuem força de lei, tendo, portanto, o seu cumprimento obrigatório por parte dos membros do Legislativo. Essa natureza jurídica confere ao Regimento Interno uma posição de destaque no ordenamento jurídico municipal, subordinado apenas à Constituição Federal, à Constituição Estadual e à Lei Orgânica Municipal.
A importância do Regimento Interno reside, precisamente, em sua função ordenadora e disciplinadora. Se cada vereador ou Mesa pudesse conduzir o processo legislativo da sua maneira, de acordo com os seus interesses particulares, muitas arbitrariedades, inconstitucionalidades e injustiças seriam cometidas. Com o intuito de não dar margem para esse tipo de conduta, a Constituição prevê que as Casas Legislativas devem funcionar de acordo com regras pré-estabelecidas pelo Regimento Interno.
Principais matérias que devem constar no Regimento Interno
A Constituição Federal traz apenas as regras e princípios gerais do processo legislativo, e ficou sob responsabilidade das Casas Legislativas municipais e estaduais traçar todas as diretrizes de seu funcionamento e as regras mais específicas, considerando suas particularidades e características próprias. Com base na análise doutrinária e no exame de regimentos internos existentes, é possível identificar as principais matérias que devem constar em um Regimento Interno de Câmara Municipal:
Disposições Preliminares e Funções da Câmara: Definição da Câmara Municipal como órgão legislativo e fiscalizador, suas funções legislativas, fiscalizadoras e administrativas, e competências constitucionais.
Estrutura organizacional: Composição da Mesa Diretora, processo de eleição, competências e atribuições da Mesa, atribuições específicas do Presidente, Vice-Presidente e Secretários, e regras para substituição e destituição.
Plenário: Utilização e funcionamento do Plenário, definição de líderes e vice-líderes de bancadas e blocos parlamentares.
Comissões: Disposições gerais sobre as comissões, regras sobre comissões permanentes (composição, competências, presidência, reuniões, pareceres) e comissões temporárias (especiais de inquérito, representação, processantes, assuntos relevantes).
Sessões Legislativas: Sessões ordinárias e extraordinárias, duração e prorrogação, suspensão e encerramento, publicidade e atas, estrutura das sessões ordinárias (expediente, ordem do dia, explicação pessoal), sessões extraordinárias e solenes.
Proposições: Tipos de proposições (projetos, requerimentos, indicações), apresentação e recebimento, retirada e arquivamento, regime de tramitação, projetos (emendas à Lei Orgânica, projetos de lei, decretos legislativos, resoluções), substitutivos, emendas e subemendas.
Processo Legislativo: Tramitação dos projetos, discussão e debates, votação (métodos, quórum), redação final, sanção, promulgação e veto, urgência e preferência.
Fiscalização financeira e orçamentária: Controle externo, comissão de finanças e orçamento, julgamento das contas, processo orçamentário.
Vereadores: Posse e exercício do mandato, direitos e deveres, licenças e afastamentos, remuneração (subsídios), perda do mandato, processo de cassação, ética e decoro parlamentar.
Participação popular: Tribuna livre, audiências públicas, petições, reclamações e representações.
Administração interna: Secretaria da Câmara, serviços administrativos, reforma do Regimento Interno.
É importante ressaltar que não cabe ao Regimento tratar dos serviços administrativos do Legislativo, porque estes assuntos são regulamentados por outras normas (leis, resoluções, portarias, atos da Mesa, etc).
A importância da manutenção e atualização do Regimento Interno
Embora exista uma certa “liberdade” na escolha das regras de organização e funcionamento da Casa e do processo legislativo, o Regimento Interno deve estar em consonância com todo o ordenamento jurídico (e à luz dele deve ser interpretado), especialmente com a Constituição Federal. Desde que a Constituição foi promulgada em 1988 já foram editadas cerca de 130 emendas constitucionais e, muitas delas, impactaram diretamente os municípios e os regimentos do Legislativo.
A Lei Orgânica Municipal, as decisões recentes do STF e demais leis brasileiras também devem ser levadas em consideração ao se realizar modificações regimentais. No entanto, levantamentos feitos pelo Interlegis do Senado Federal informam que em mais de 80% das Câmaras Municipais do país, os Regimentos Internos estão desatualizados e permanecem sem qualquer alteração desde sua primeira versão. Em outras Câmaras de Vereadores, os Regimentos sofreram apenas algumas mudanças pontuais.
As consequências de um regimento desatualizado são graves e multifacetadas:
Consequências jurídicas
Insegurança jurídica: Um Regimento Interno cheio de lacunas e inconstitucionalidades gera grande insegurança jurídica, tanto para o Executivo quanto para o Legislativo, e até mesmo para a população.
Anulação judicial de atos: O próprio STF já estabeleceu que um projeto de lei aprovado em desobediência às regras do processo legislativo, mesmo que sancionado e promulgado pelo chefe do Executivo, poderá ser questionado judicialmente e “derrubado”, caso se confirme posteriormente a sua inconstitucionalidade.
Nulidade de deliberações: Decisões tomadas com base em regras procedimentais inconstitucionais podem ser anuladas pelo Poder Judiciário, gerando retrabalho e prejuízos à eficiência administrativa.
Ações Diretas de Inconstitucionalidade: Há casos de prefeituras que ingressam com ADIs contra dispositivos do regimento interno da Câmara Municipal, o que demonstra o potencial litigioso de regimentos desatualizados.
Consequências políticas e administrativas
Prejuízo à dinâmica dos trabalhos: Um regimento arcaico, com redação ultrapassada e repleta de inconsistências, prejudica a dinâmica dos trabalhos legislativos da Casa, tanto em aspectos técnicos como políticos.
Dúvidas procedimentais: A Mesa, os servidores e o assessor jurídico frequentemente se veem perdidos e sem saber como proceder por falta de regras claras. Não é raro que assessores ou servidores fiquem em dúvida durante procedimentos legislativos, por falta de clareza e objetividade regimental.
Interpretações arbitrárias: Não estando claro qual conduta o Presidente e a Mesa devem tomar em cada situação, abre-se margem para a livre interpretação das normas, o que pode resultar no favorecimento de alguns em detrimento de outros, causando desentendimentos entre os parlamentares.
Ineficiência administrativa: A falta de clareza nas regras procedimentais pode levar a debates prolongados sobre questões de ordem, atrasando a deliberação sobre temas substantivos.
Além da conformidade legal, é importante que o Regimento Interno e o funcionamento da Câmara acompanhem as mudanças da sociedade e estejam sempre condizentes com a realidade atual. A adequação do processo legislativo para o meio digital, garantindo mais transparência, publicidade e participação popular, é uma forma essencial de modernização da Casa.
Principais ilegalidades e inconstitucionalidades em Regimentos Internos
Com base na pesquisa realizada em fontes jurídicas, jurisprudência e notícias especializadas, é possível identificar diversos pontos de ilegalidade e inconstitucionalidade frequentemente encontrados em regimentos internos de câmaras municipais brasileiras:
1. Convocação do Prefeito para prestar esclarecimentos: conforme decisão do Tribunal de Justiça do Amazonas (Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível n.º 0002543-56.2021.8.04.0000), é inconstitucional a previsão regimental que permite à Câmara Municipal convocar o Prefeito para prestar esclarecimentos perante o Plenário.
O TJAM declarou inconstitucional o artigo 162, do Regimento Interno da Câmara Municipal de São Sebastião do Uatumã (AM), que dispunha:
Art. 162. A Câmara Municipal poderá convocar o Prefeito para prestar esclarecimentos perante o Plenário, sobre matéria relacionada com administração, sempre que faça necessária tal medida, a fim de assegurar a função de fiscalização do Legislativo.
A decisão fundamentou-se no princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF e art. 14 da Constituição do Estado do Amazonas) e na simetria com o modelo federal, que não prevê a convocação do Presidente da República pelo Congresso Nacional, mas apenas de Ministros e autoridades subordinadas (art. 50 da CF).
2. Voto secreto em situações vedadas pela Constituição: muitos regimentos internos ainda mantêm a previsão de votação secreta para processos de cassação de parlamentares e no exame dos vetos do Executivo, contrariando a Emenda Constitucional 76/2013, que aboliu o voto secreto nessas situações.
Esta inconstitucionalidade pode levar à anulação judicial dos atos da Casa, comprometendo todo o processo legislativo e gerando insegurança jurídica.
3. Pagamento por Sessões Extraordinárias: alguns regimentos ainda preveem o pagamento de parcela indenizatória quando o vereador é convocado a participar de sessão extraordinária, o que contraria a Emenda Constitucional 50/2006, que proibiu expressamente que os parlamentares recebam qualquer remuneração pelo fato de participarem de convocações extraordinárias.
4. Restrição indevida à competência de Vereadores: são inconstitucionais dispositivos regimentais que restringem indevidamente a competência dos vereadores, violando o princípio da igualdade entre os parlamentares e o pleno exercício do mandato.
Um exemplo é a limitação desproporcional do direito de apresentar proposições, emendas ou participar de comissões, que viola prerrogativas constitucionais dos parlamentares.
5. Regras de eleição da Mesa Diretora contrárias à Constituição: há casos de inconstitucionalidade em regras sobre a eleição da Mesa Diretora, como:
a) Eliminação da eletividade para Presidente da Mesa, impondo a assunção automática do vereador mais votado;
b) Restrições indevidas à recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente, em desacordo com a jurisprudência do STF;
c) Procedimentos que violam o princípio democrático e a autonomia do Poder Legislativo;
6. Procedimentos de cassação de Mandato incompatíveis com o Decreto-Lei 201/67: muitos regimentos estabelecem procedimentos para cassação de mandato de vereadores e prefeitos que são incompatíveis com o Decreto-Lei 201/67, que regula a matéria em âmbito nacional e tem status de lei especial.
Estas incompatibilidades podem levar à nulidade de todo o processo de cassação, mesmo que já concluído, gerando grave insegurança jurídica.
7. Violação ao Devido Processo Legislativo: são comuns dispositivos regimentais que violam o devido processo legislativo, como:
a) Prazos insuficientes para análise de matérias complexas
b) Ausência de previsão adequada para participação popular
c) Restrições indevidas ao direito de apresentação de emendas
d) Procedimentos que permitem a aprovação de matérias sem a devida discussão
8. Incompatibilidade com a Lei Orgânica Municipal: muitos regimentos internos contêm dispositivos que conflitam com a Lei Orgânica do próprio município, gerando antinomias no ordenamento jurídico local e comprometendo a segurança jurídica.
9. Ausência de adaptação às novas tecnologias: a falta de previsão adequada para sessões virtuais, votação eletrônica e participação popular por meios digitais pode configurar omissão inconstitucional, especialmente após a pandemia de COVID-19, que demonstrou a necessidade de adaptação dos procedimentos legislativos às novas tecnologias.
10. Violação aos Princípios da Publicidade e Transparência: dispositivos que limitam indevidamente o acesso público às informações, documentos e sessões da Câmara Municipal violam os princípios constitucionais da publicidade e transparência (art. 37 da CF), especialmente após a edição da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).
Recomendações para atualização e modernização do Regimento Interno
Diante do cenário apresentado, é fundamental que as Câmaras Municipais promovam a revisão e atualização de seus regimentos internos, observando as seguintes recomendações:
Análise de conformidade constitucional: Realizar uma análise detalhada do regimento interno à luz da Constituição Federal, suas emendas e da jurisprudência do STF, identificando e corrigindo dispositivos inconstitucionais.
Harmonização com a Lei Orgânica Municipal: Garantir que o regimento interno esteja em perfeita harmonia com a Lei Orgânica do município, evitando conflitos normativos.
Modernização tecnológica: Incorporar previsões para o uso de tecnologias digitais, como sessões virtuais, votação eletrônica e participação popular por meios digitais.
Transparência e participação: Fortalecer os mecanismos de transparência e participação popular, em conformidade com a Lei de Acesso à Informação e os princípios constitucionais da publicidade e eficiência.
Simplificação e clareza: Adotar uma redação clara, objetiva e acessível, evitando ambiguidades e interpretações divergentes.
Revisão periódica: Estabelecer um mecanismo de revisão periódica do regimento interno, garantindo sua constante atualização diante das mudanças legislativas e jurisprudenciais.
Capacitação: Promover a capacitação contínua de vereadores e servidores sobre o regimento interno, garantindo seu efetivo conhecimento e aplicação.
Conclusão
O Regimento Interno é um instrumento fundamental para o adequado funcionamento das Câmaras Municipais, garantindo a ordem, a disciplina e a segurança jurídica no processo legislativo. No entanto, a realidade brasileira revela um cenário preocupante de desatualização desses instrumentos normativos, com mais de 80% das Câmaras Municipais mantendo regimentos internos sem qualquer alteração desde sua primeira versão.
Esta desatualização gera graves consequências jurídicas, políticas e administrativas, comprometendo a legitimidade da produção normativa municipal e a própria efetividade da democracia local. As ilegalidades e inconstitucionalidades presentes em regimentos desatualizados podem levar à anulação judicial de atos legislativos, gerando insegurança jurídica e prejuízos à sociedade.
Diante desse cenário, é urgente que as Câmaras Municipais promovam a revisão e atualização de seus regimentos internos, adequando-os à Constituição Federal, às suas emendas, à jurisprudência do STF, à Lei Orgânica Municipal e às novas tecnologias e demandas sociais. Somente assim será possível garantir um processo legislativo municipal eficiente, transparente, participativo e juridicamente seguro, fortalecendo a democracia local e promovendo o desenvolvimento dos municípios brasileiros.
Referências
CUNHA, Renata. Por que a Câmara Municipal deve manter seu Regimento Interno atualizado e moderno? O Novo Legislativo, 28 ago. 2023. Disponível em: https://onovolegislativo.com.br/por-que-a-camara-municipal-deve-manter-seu-regimento-interno-atualizado-e-moderno/
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 76, de 28 de novembro de 2013. Altera o § 2º do art. 55 e o § 4º do art. 66 da Constituição Federal, para abolir a votação secreta nos casos de perda de mandato de Deputado ou Senador e de apreciação de veto.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 50, de 14 de fevereiro de 2006. Modifica o art. 57 da Constituição Federal.
BRASIL. Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, e dá outras providências.
AMAZONAS. Tribunal de Justiça. Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível n.º 0002543-56.2021.8.04.0000. Relator: Desembargador Jomar Fernandes. Amazonas, 26 de abril de 2022.
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.
INTERLEGIS. Senado Federal. Levantamento sobre atualização de Regimentos Internos de Câmaras Municipais. Brasília, 2022.