A legalidade da contratação de advogados por inexigibilidade de licitação

A contratação de serviços advocatícios, pela Administração Pública, é um tema recorrente no Direito Administrativo e levanta debates sobre os limites da legalidade, da eficiência e da moralidade administrativa.

Um dos principais pontos de discussão reside na possibilidade de se contratar escritórios de advocacia sem licitação, com base na inexigibilidade, nos termos do art. 74, da Lei nº 14.133/2021, que revogou a antiga Lei nº 8.666/1993.

Fundamento legal da inexigibilidade

É oportuno enfatizar que, o regime de contratações públicas exige a realização de processo licitatório, a fim de garantir, de um lado, igualdade de condições entre os interessados em contratar com a Administração Pública e, de outro, a obtenção de proposta mais vantajosa para a Administração, nos termos do texto constitucional em seu art. 37, inciso XXI. Vejamos: 

Art. 37. […] 

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. 

Essa obrigatoriedade de licitar funda-se em dois aspectos basilares.

O primeiro é o de estabelecer um tratamento igualitário entre os interessados em contratar, como forma de realização do princípio da impessoalidade, da isonomia e da moralidade; e o segundo revela-se no propósito do Poder Público de alcançar a proposta que lhe seja mais vantajosa. Esses dois aspectos estão expressamente, indicados nos incisos do art. 11, da Lei nº 14.133/2021:  

Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:  

I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;  

II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;  

III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;  

IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável. 

Nesse norte, a realização da licitação é, em regra, conditio sine qua non para a consecução da contratação pública.

Com efeito, é preciso que a Administração obtenha a proposta mais vantajosa ao interesse público e, ainda, conceda a todos os interessados igualdade de condições.  

No entanto, diante da compreensão de que a licitação não é a única forma de realização do interesse público, sobretudo considerando-se a pluralidade de situações abrangidas pela atuação estatal, a ordem constitucional atribuiu às normas infralegais a possibilidade de fixação de exceções à realização de procedimento licitatório .

Nesse sentido, há de mencionar, entretanto, que a Lei n° 14.133/21, apresenta situações especiais em que poderá ocorrer a dispensa e/ou inexigibilidade da licitação, nas contratações realizadas pelo Poder Público.  

Conforme lecionou Celso Antônio Bandeira de Mello1

[…] a licitação não é um fim em si mesmo; é um meio para chegar utilmente a um dado resultado: o travamento de uma certa relação jurídica. Quando nem mesmo em tese pode cumprir tal função, seria descabido realizá-la. Embora fosse logicamente possível realizá-la, seria ilógico fazê-lo em face do interesse jurídico a que se tem que atender. Diante de situações desta ordem é que se configuram os casos acolhidos na legislação como de “dispensa” de certame licitatório ou os que terão que ser considerados como de “inexigibilidade” dele. 

Desse modo, no mesmo sentido, como admitiu o poder constituinte, a lei previu casos excepcionais que permitem à Administração Pública realizar contratações diretas, sendo nas hipóteses em que o procedimento licitatório é dispensado (art. 75) e naquelas em que ele é inexigível (art. 74), conforme dispõe a Lei nº. 14.133/2021.  

Assim, o art. 74, do estatuto licitatório, faz uma lista exemplificativa de situações que podem caracterizar essa ausência de competição, e, consequentemente, levar à inexigibilidade, incluindo-se aí as contratações de natureza predominantemente, intelectual. Vejamos: 

Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de: 

I – aquisição de materiais, de equipamentos ou de gêneros ou contratação de serviços que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivos; 

II – contratação de profissional do setor artístico, diretamente ou por meio de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública; 

III – contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação: 

a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou projetos executivos; 

b) pareceres, perícias e avaliações em geral; 

c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; 

d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; 

e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas; 

f) treinamento e aperfeiçoamento de pessoal; 

g) restauração de obras de arte e de bens de valor histórico; 

h) controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem no disposto neste inciso; 

IV – objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento; 

V – aquisição ou locação de imóvel cujas características de instalações e de localização tornem necessária sua escolha. 

Dentro das opções previstas para a contratação na modalidade inexigibilidade, encontra-se a norma esculpida no art. 74, III, da Lei nº 14.133 de 2021, a qual permite o afastamento da regra geral de licitar quando não for viável a competição em casos em que a Administração pretende realizar a contratação de serviços técnicos especializados de natureza intelectual.  

Ademais, com fundamento no art. 74, inciso III, alínea “c”, da Lei nº 14.133/2021, percebe-se outra pertinente hipótese de inexigibilidade de licitação: a contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente, intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, para fins de assessorias ou consultorias técnicas.  

Explica e diferencia Marçal Justen Filho2:  

SERVIÇO TÉCNICO: Um serviço configura-se como “técnico” quando importar a aplicação do conhecimento teórico e da habilidade pessoal para promover uma alteração no universo físico ou social. A noção de “técnica” vincula-se à transposição para a vida prática de um conhecimento teórico, de modo a gerar uma utilidade efetiva e concreta. Os serviços ditos “técnicos” caracterizam-se por envolverem a aplicação de metodologia formal para atingir determinado m. A técnica pressupõe a operacionalização do conhecimento científico, permitindo aplicações práticas para uma teoria. Por meio de serviço técnico, obtém-se alteração no universo circundante e se atinge um resultado preordenado que se colimava. (…) 

SERVIÇO TÉCNICO ESPECIALIZADO: A especialização significa a capacitação para exercício de uma atividade com habilidades que não estão disponíveis para um profissional ordinário ou padrão. A especialização identifica uma capacitação maior do que a usual e comum e é produzida pelo domínio de uma área restrita, com habilidades que ultrapassam o conhecimento da média dos profissionais necessários ao desenvolvimento da atividade em questão. O especialista é aquele prestador de serviço técnico profissional que dispõe de uma capacidade diferenciada, permitindo-lhe solucionar problemas e dificuldades complexas. 

SERVIÇO TÉCNICO ESPECIALIZADO PREDOMINANTEMENTE INTELECTUAL: O serviço técnico predominantemente intelectual é aquele que envolve uma habilidade individual, uma capacidade peculiar, relacionada com potenciais intelectuais personalíssimos. Promove-se uma espécie de “transformação” do conhecimento teórico em prático, o que envolve um processo intermediado pela capacidade humana. (…) 

Vale observar que, a notória especialização não é extraída da simples opinião do gestor; mas derivada do reconhecimento do profissional ou da empresa no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, documentos esses que demonstram, de forma objetiva, que o trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto em análise. 

Isso porque, por expressa previsão legal, art. 74, III, as assessorias ou consultorias técnicas são consideradas serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual. 

 Como requisito fundamental para a contratação direta de serviços com essa natureza, o legislador entendeu que deve estar demonstrada a notória especialização do contratado. Nesse sentido, a art. 74, §3º, da Lei nº 14.133/21 dispõe da seguinte forma:  

Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de: […] 

§ 3º Para fins do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se de notória especialização o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato 

Assim, tratando-se de serviço de natureza predominantemente intelectual – aquele que depende de conhecimentos científicos oriundos de estudos teóricos – a inexigibilidade de licitação será viável quando o profissional ou a pessoa jurídica a ser contratada possuir notória especialização acerca da temática.  

Além da definição contida no dispositivo acima destacado, o inciso XIX, do art. 6º, da Lei nº 14.133/21, define notória especialização como a:

Art. 6º […]

XIX- notória especialização: qualidade de profissional ou de empresa cujo conceito, no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permite inferir que o seu trabalho é essencial e reconhecidamente adequado à plena satisfação do objeto do contrato.  

Atente-se que, o requisito da notória especialização exigido na Lei não é a especialização comum; mas a notória, ou seja, diferenciada, dotada de qualidade mais reconhecida, consagrada no respectivo ramo da atuação, o que acarreta a necessidade de demonstrar experiência, credibilidade e confiança na prestação dos serviços contratados, motivo pelo qual não se verifica viável a competição. 

Para além disso, vale dizer que o simples fato de o profissional ser “famoso” ou “repercutido”, por si, não se legitima ao reconhecimento da notoriedade, que é distinta da notabilidade. 

Lado outro, ter a reputação no campo de sua atuação, deve ser somado ao requisito material (documental), para se configurar a notoriedade. Isso, porque, se bastasse o critério objetivo, a lei traria expressões do tipo “especialização comprovada”, “atestados comprobatórios” etc.

O profissional deve ser também – mas não apenas – dotado de qualidade mais reconhecida, consagrada no respectivo ramo da atuação. Isso acarreta a necessidade de demonstrar experiência, credibilidade e confiança na prestação dos serviços contratados. 

Logo, por se tratar de exceção à regra constitucional de licitar, a inexigibilidade perpassa por aprofundadas exigências que não podem ser banalizadas, somando, a um só tempo o critério objetivo documental, com o critério subjetivo de reputabilidade, cujo serviço se torna, aí sim, justificável a ponto de ser contratado diretamente. 

É importante destacar que nesses casos é vedada a subcontratação de empresas ou profissionais distintos daqueles que tenham justificado a inexigibilidade, conforme §4º, do art. 74, da Lei 14.133/21. 

A notória especialização não se confunde com exclusividade de prestação de serviços. Esta hipótese é contemplada noutro dispositivo legal, por sinal. 

Os serviços previstos na lei podem ser prestados por vários especialistas, ou seja, não se faz necessário que somente uma pessoa disponha da técnica pretendida pela Administração Pública; outros também podem dominá-la.

No entanto, todos eles a realizam com traço eminentemente subjetivo, em razão do que, repita-se, a inexigibilidade tem lugar pela falta de critérios objetivos para os cotejar.  

Assim, embora não exista um critério objetivo para a caracterização dos serviços técnicos especializados elencados pela lei, há de se verificar, caso a caso, o preenchimento dos requisitos, notadamente, a natureza predominantemente intelectual do serviço e a notória especialização do prestador/empresa.

Cuidados e limites

Apesar da viabilidade jurídica, a contratação direta de advogados sem licitação não é irrestrita e deve ser realizada com rigor técnico e jurídico, para evitar vícios de legalidade e irregularidades apontadas pelos órgãos de controle.

Entre os cuidados mais importantes, destacam-se:

  • A ausência de estrutura interna não pode ser genérica: deve-se demonstrar que o serviço a ser contratado extrapola a capacidade dos procuradores municipais ou do corpo jurídico da Administração.
  • Deve-se evitar contratações padronizadas ou genéricas, que possam indicar favorecimento pessoal ou político.
  • A justificativa do preço deve ser bem documentada, com cotações, referências de mercado ou parâmetros objetivos de honorários.

Conclusão

A contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação é uma faculdade prevista em lei e reconhecida pela jurisprudência, desde que fundamentada na inviabilidade de competição, na notória especialização do contratado e na singularidade do serviço.

A Administração Pública, no entanto, deve atuar com rigor técnico e documental, garantindo a legalidade, a eficiência e a transparência do procedimento.

Dessa forma, o gestor público deve cercar-se de cautelas e justificativas adequadas, assegurando que a contratação atenda ao interesse público e não se desvie de sua finalidade legítima.

  1. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 36. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2023. p. 422. ↩︎
  2. Justen Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. Páginas 975 e 976. ↩︎

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