Cessão de uso de bem público: aspectos jurídicos, doutrinários e jurisprudenciais

A cessão de uso de bem público é uma prática administrativa que permite, à Administração Pública, transferir a posse de um bem público a outra entidade, seja pública ou privada, para que este bem seja utilizado em atividades de interesse coletivo.

Essa transferência pode ser gratuita ou onerosa, dependendo das circunstâncias e da legislação aplicável.

Fundamentos doutrinários

Segundo abaliza doutrina de Hely Lopes Meirelles1:

Cessão de uso é a transferência gratuita da posse de um bem público de uma entidade ou órgão para outro, a fim de que o Cessionário o utilize nas condições estabelecidas no respectivo termo, por tempo certo ou indeterminado. É ato de colaboração entre repartições públicas, em que aquela que tem bens desnecessários aos seus serviços cede o uso a outra que deles está precisando.

Para compor a fundamentação do presente artigo, e dele fazer parte integrante, invocamos a opinião de José dos Santos Carvalho Filho2, quanto ao tema:

Cessão de uso é aquela em que o Poder Público consente o uso gratuito de bem público por órgãos da mesma pessoa ou de pessoa diversa, incumbida de desenvolver atividade que, de algum modo, traduza interesse para a coletividade. A grande diferença entre a cessão de uso e as formas até agora vistas consiste em que o consentimento para a utilização do bem se fundamenta no benefício coletivo decorrente da atividade desempenhada pelo cessionário.

[…]

A formalização da cessão de uso se efetiva por instrumento firmado entre os representantes das pessoas cedente e cessionária, normalmente denominado de “termo de cessão” ou “termo de cessão de uso”. O prazo pode ser determinado, e o cedente pode a qualquer momento reaver a posse do bem cedido. Por outro lado, entendemos que esse tipo de uso só excepcionalmente depende de lei autorizadora, porque o consentimento se situa normalmente dentro do poder de gestão dos órgãos administrativos. Logicamente, é vedado qualquer desvio de finalidade, bem como a extensão de dependências cedidas com prejuízo para o regular funcionamento da pessoa cedente.

Os bens atribuídos ao Município compõem o patrimônio público municipal, sendo que a regulamentação de seu uso, destinação adequada e excepcional alienação incumbem à Administração local.

No que concerne ao uso de bens públicos, a doutrina classifica como bens de uso comum do povo aqueles que podem ser usufruídos pela coletividade em geral, sem qualquer limitação ou exigência de qualificação ou consentimento.

Já os bens de uso especial são aqueles atribuídos pela Administração, com exclusividade, a determinado indivíduo, de acordo com as cláusulas convencionadas.  

O uso especial de bens públicos, por particulares, pode se dar de diversas formas, como a autorização de uso, a permissão de uso, a concessão de uso etc. 

A concessão de uso trata-se, em verdade, de Contrato Administrativo que atribui a utilização de um bem público a um administrado para que este o explore por sua conta e risco, de acordo com sua destinação específica, diferenciando-se das demais modalidades, tendo em vista tratar-se de contrato e não de ato unilateral e precário, sendo, portanto, mais estável.  

A escolha do instituto adequado incumbe à Administração Pública, visando atender o melhor interesse público, tratando-se de ato de gestão administrativa. 

Modalidades de cessão de uso

A cessão de uso pode se manifestar de diferentes formas, conforme o interesse público envolvido e a natureza do cessionário:

  • Cessão entre Entidades Públicas: Quando um órgão ou entidade pública cede a outro órgão ou entidade pública o uso de bem público para a realização de atividades de interesse comum.
  • Cessão a Entidades Privadas: Quando o uso do bem público é cedido a entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, para a realização de atividades que atendam ao interesse coletivo, como projetos sociais, culturais ou educacionais.
  • Cessão Onerosa: Quando há previsão de contraprestação financeira pela utilização do bem público, devendo ser observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
  • Cessão Gratuita: Quando a utilização do bem público é autorizada sem a exigência de contraprestação financeira, geralmente em situações que envolvem interesse público relevante.

Exigência de licitação

A cessão de uso de bem público está sujeita à exigência de licitação, conforme estabelece o artigo 37, XXI, da Constituição Federal, que determina que a Administração Pública deve licitar para a alienação de bens públicos.

É o entendimento proferido pela doutrina de JUSTEN FILHO3, que aponta para a necessidade de licitação:

(…) a obrigatoriedade de licitação deriva da necessidade de tratamento não discriminatório. (…). Quanto à exigência de licitação, deve entender-se necessária sempre que for possível e houver mais de um interessado na realização do bem, evitando-se favorecimentos ou preterições ilegítimas. Em alguns casos especiais, porém, a licitação será inexigível, como, por exemplo, a permissão de uso de calçada em frente a um bar, restaurante ou sorveteria”. 

Conforme disposto no artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal, o constituinte estabeleceu que a regulamentação das normas gerais relativas a licitações e contratações é de competência privativa da União, abrangendo as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais dos entes federativos, ou seja, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, desde que observadas as disposições estabelecidas no artigo 37, inciso XXI. 

A exigência de procedimento licitatório, para contratações realizadas pela Administração Pública, constitui um princípio constitucional estabelecido e vinculante, que deve ser estritamente observado pelos Estados e Municípios. 

No exercício de sua competência privativa, conforme assegurado pelo artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal, a União promulgou a Lei nº 14.133/21, que, entre outras disposições, regulamenta os casos em que a licitação pode ser dispensada ou considerada inexigível

No que se refere à concessão de direito real de uso de bens imóveis, portanto, a Lei de Licitações determina que a dispensa de licitação ocorrerá, exclusivamente, nas situações descritas no inciso I, alíneas “f”, “g”, e “h”, do artigo 76, bem como nas circunstâncias elencadas no parágrafo 3º, respeitando as disposições do §4º. Vejamos:

Art. 76. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

I- tratando-se de bens imóveis, inclusive os pertencentes às autarquias e às fundações, exigirá autorização legislativa e dependerá de licitação na modalidade leilão, dispensada a realização de licitação nos casos de:

[…]

f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação e permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente usados em programas de habitação ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgão ou entidade da Administração Pública;

g) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação e permissão de uso de bens imóveis comerciais de âmbito local, com área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) e destinados a programas de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgão ou entidade da Administração Pública;

h) alienação e concessão de direito real de uso, gratuita ou onerosa, de terras públicas rurais da União e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) onde incidam ocupações até o limite de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, para fins de regularização fundiária, atendidos os requisitos legais;

[…]

Vale ressaltar, adicionalmente, que a Lei nº 14.133/21 define, ao tratar da exigência de procedimento licitatório, os casos que implicam na celebração de contratos entre a Administração Pública e terceiros, conforme estabelecido no artigo 2º, do referido diploma legal.

A legislação estipula que deve ser considerado contrato “qualquer acordo de vontades entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, resultando na formação de um vínculo e no estabelecimento de obrigações recíprocas, independentemente da nomenclatura utilizada”. 

Dessa forma, ao autorizar a concessão de direito real de uso, mediante dispensa de licitação, em hipóteses não previstas no artigo supramencionado, mesmo havendo evidente interesse público, o Poder Público local estabelece inovações às normas gerais de licitação.  

Isso resulta em uma potencial contrariedade à competência legislativa da União para a criação de normas gerais relacionadas a licitações e contratos administrativos (conforme os artigos 22, XXVII e 37, XXI), demonstrando uma possível violação à competência  normativa federal. 

As exceções à realização de licitações (seja por inexigibilidade, dispensa, dispensabilidade ou proibição) representam elementos fundamentais das normas gerais relativas a licitações e contratações públicas.

Não é permitido aos Municípios regulamentarem essa matéria por meio de legislação e ou atos administrativos que excedam as disposições estabelecidas em leis federais.  

Alguns precedentes do STF merecem ser colacionados, para fundamentar este artigo: 

Impugnação da Lei 11.871/2002, do Estado do Rio Grande do Sul, que instituiu, no âmbito da administração pública sul-rio-grandense, a preferencial utilização de softwares livres ou sem restrições proprietárias. Plausibilidade jurídica da tese do autor que aponta invasão da competência legiferante reservada à União para produzir normas gerais em tema de licitação, bem como usurpação competencial violadora do pétreo princípio constitucional da separação dos poderes.(ADI 3.059-MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 15-4-2004, Plenário, DJ de 20-8-2004) 

Ação direta de inconstitucionalidade: Lei distrital 3.705, de 21-11-2005, que cria restrições a empresas que discriminarem na contratação de mão de obra: inconstitucionalidade declarada. Ofensa à competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação administrativa, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todos os entes da Federação (CF, art. 22, XXVII) e para dispor sobre direito do trabalho e inspeção do trabalho (CF, art. 21, XXIV, e art. 22, I). (ADI 3.670, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-4-2007, Plenário, DJ de 18-5-2007.) 

Não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que precipuamente devem reger os atos relacionados com a administração pública. O art. 37, XXI, da CF, de conteúdo conceptual extensível primacialmente aos procedimentos licitatórios, insculpiu o princípio da isonomia assecuratória da igualdade de tratamento entre todos os concorrentes, em sintonia com o seu caput – obediência aos critérios da legalidade, impessoalidade e moralidade – e ao de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. (MS 22.509, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-9-1996, Plenário, DJ de 4-12-1996.) 

Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade de artigos de lei municipal. Normas que determinam prorrogação automática de permissões e autorizações em vigor, pelos períodos que especifica. (…) Prorrogações que efetivamente vulneram os princípios da legalidade e da moralidade, por dispensarem certames licitatórios previamente à outorga do direito de exploração de serviços públicos” (RE 422.591, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º-12-2010, Plenário, DJE de 11-3-2011.) 

Aspectos práticos

A prática da cessão de uso de bem público deve observar os princípios constitucionais da Administração Pública, especialmente os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Além disso, é fundamental que a cessão esteja devidamente formalizada por meio de instrumento jurídico adequado, como o termo de cessão, que deve especificar as condições de uso, o prazo, as responsabilidades das partes e as penalidades em caso de descumprimento.

Conforme observado no tópico anterior, a jurisprudência tem se manifestado no sentido de que a cessão de uso de bem público deve ser precedida de licitação, salvo nas hipóteses legais que admitem contratação direta.

O Tribunal de Contas da União, por exemplo, tem reiterado que a concessão de uso de bem público, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, deve observar as normas gerais de licitação, conforme disposto na Lei nº 14.133/2021.

Conclusão

A cessão de uso de bem público é uma ferramenta importante para a Administração Pública viabilizar a utilização de seus bens em atividades que atendam ao interesse coletivo.

No entanto, é imprescindível que essa prática seja realizada em conformidade com a legislação vigente, observando os princípios constitucionais e as normas infraconstitucionais aplicáveis, a fim de garantir a legalidade, a transparência e a eficiência na gestão dos bens públicos.

  1. Direito Administrativo Brasileiro, 33ª edição, 2007, p. 528/529. ↩︎
  2. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris 2004, p. 947. ↩︎
  3. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2010, p. 902 ↩︎

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