Funk proibido em escolas municipais? Limites constitucionais da atuação parlamentar

A atuação do Poder Legislativo municipal encontra, na Constituição Federal, fundamentos claros para a sua autonomia, especialmente no que se refere à legislação sobre assuntos de interesse local.

No entanto, essa liberdade normativa possui limites — tanto formais quanto materiais — que devem ser observados com atenção, especialmente em áreas sensíveis como a educação.

O que pode (e o que não pode) o legislador municipal?

De acordo com o artigo 30, inciso I, da Constituição de 1988, os Municípios têm competência para “legislar sobre assuntos de interesse local”.

Em tese, isso permite ao legislador municipal criar normas relacionadas às escolas públicas do Município. Mas essa competência deve ser exercida dentro de uma moldura que respeite o pacto federativo, a separação de poderes e a organização administrativa já estabelecida.

Iniciativas sobre o conteúdo escolar: quem decide?

Um ponto essencial nessa discussão é a iniciativa legislativa.

Propostas que interferem diretamente no funcionamento das escolas — como definição de conteúdos, proibição de músicas, vídeos ou expressões artísticas — afetam a estrutura pedagógica e administrativa da rede municipal de ensino.

Por isso, conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, esse tipo de iniciativa é reservada ao chefe do Poder Executivo, por envolver organização de serviços públicos e gestão de políticas educacionais.

E mais: conforme observamos na decisão proferida pela Corte, na ADPF nº 462, a competência privativa da União impede que leis estaduais, distritais ou municipais estabeleçam regras gerais sobre ensino e educação e tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologias de ensino ou modos de exercício da atividade docente. Vejamos:

Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CONVERSÃO DO REFERENDO DA MEDIDA CAUTELAR EM JULGAMENTO DE MÉRITO. ART. 10, § 5º, DA LEI COMPLEMENTAR 994/2015, DO MUNICÍPIO DE BLUMENAU/SC. PROIBIÇÃO DO USO DAS EXPRESSÕES “IDEOLOGIA DE GÊNERO”, “IDENTIDADE DE GÊNERO” E “ORIENTAÇÃO DE GÊNERO” EM DOCUMENTOS COMPLEMENTARES AO PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E NAS DIRETRIZES CURRICULARES. OFENSA FORMAL À CONSTITUIÇÃO. VIOLAÇÃO À COMPETÊNCIA DA UNIÃO. OFENSA MATERIAL À CONSTITUIÇÃO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE HUMANA E DA IGUALDADE. DIREITO À EDUCAÇÃO. OBRIGAÇÃO ESTATAL DE CAPACITAR TODOS PARA PARTICIPAREM DE UMA SOCIEDADE LIVRE. 1. Os municípios não dispõe de competência para proibir conteúdo pedagógico, porquanto exaustivas as diretrizes editadas pela União. Precedentes. 2. Controvérsia deve ser compreendida e solucionada à luz dos direitos fundamentais, de sua eficácia horizontal e dos direitos da personalidade. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. O direito à igualdade não se esgota com a previsão normativa de acesso igualitário a bens jurídicos, mas engloba também medidas que efetivamente possibilitem tal acesso e sua efetivação concreta. 4. O conteúdo do direito à educação necessariamente abarca a obrigação estatal de capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, justa e igualitária. 5. Conversão do julgamento do referendo da medida cautelar no mérito da arguição, a que se dá procedência para declarar a inconstitucionalidade do § 5º do art. 10 da Lei Complementar do Município de Blumenau n. 994/2015.

A separação dos poderes e o vício formal de iniciativa

Segundo o artigo 61, §1º, da Constituição, há temas cuja proposição legislativa cabe exclusivamente ao Poder Executivo.

A ingerência legislativa sobre currículos escolares, atividades pedagógicas ou obrigações administrativas da Secretaria de Educação viola esse princípio, caracterizando o chamado vício formal de iniciativa.

Ainda que o tema seja relevante — como a tentativa de proibir músicas que façam apologia ao crime ou tenham conotação sexual em escolas — a via adequada para sua implementação não pode desrespeitar os limites constitucionais impostos ao legislativo municipal.

A importância da técnica legislativa e da segurança jurídica

Outro desafio enfrentado por projetos desse tipo é a ausência de clareza nos termos utilizados.

Expressões como “conteúdo erótico” ou “apologia ao crime”, sem definição objetiva, abrem margem para interpretações subjetivas e conflitantes. Isso compromete a aplicação da norma e fere os princípios da legalidade e da segurança jurídica, pilares de qualquer ordenamento normativo sólido.

E os impactos administrativos e financeiros?

Toda nova obrigação, imposta ao Poder Executivo, deve vir acompanhada de estudos que demonstrem sua viabilidade.

A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que alterações que impliquem em aumento de despesa ou criação de novos encargos administrativos venham acompanhadas de estimativas de impacto financeiro. Ignorar essa exigência é mais um ponto que pode comprometer a validade de uma lei municipal.

Educação: política pública de natureza técnica e federativa

A definição de diretrizes pedagógicas é função técnica, atribuída aos órgãos de educação em cada esfera federativa.

O conteúdo das atividades escolares segue os parâmetros nacionais estabelecidos pelo Ministério da Educação e pelas diretrizes curriculares.

Alterações nesse escopo precisam ser construídas de forma articulada, com participação dos conselhos de educação e das equipes técnicas responsáveis, evitando decisões unilaterais que comprometam o planejamento pedagógico.

A discussão sobre o que deve ou não ser permitido nas escolas é legítima e necessária. No entanto, ela precisa ser feita dentro dos parâmetros legais e constitucionais.

A boa intenção não basta: é preciso respeitar os princípios que estruturam nosso Estado Democrático de Direito — entre eles, a separação dos poderes, o respeito à autonomia técnica e a responsabilidade fiscal.

Esse debate continua — nas escolas, nas câmaras municipais e no meio jurídico. E que continue com base sólida, diálogo democrático e segurança jurídica para todos os envolvidos.

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